Adiscussão sobre transformação digital nas empresas – presente nos mais diferentes segmentos e setores da economia em âmbito global – aos poucos deixa de ser uma novidade no mercado, para se tornar, de fato, uma obrigação. É comum, portanto, imaginar o setor industrial, com todos os seus processos produtivos, como aquele que mais possui espaço para a introdução de inovações tecnológicas.
Apesar de ser verdade (considerando que grande parte desses processos ainda são feitos de forma manual), a utilização de tecnologias de automação – pertencentes à era 3.0 –, por exemplo, ainda é incipiente no Brasil, fato que dificulta uma inserção efetiva na Indústria 4.0. Na era dos dados, são eles que ditam a mudança, se tratados de forma conveniente e alinhada à estratégia de negócios das empresas. O caminho é longo, mas não percorrê-lo parece uma saída pouco inteligente para as companhias.
A Internet das Coisas como primeiro passo para uma indústria digitalizada
Utilizar-se de IoT (Internet of Things, ou, traduzindo, Internet das Coisas) pode ser considerado como um pontapé inicial para a digitalização dentro da indústria. A captura de dados provenientes de processos de produção torna possível a evolução de tarefas em direção à automação, além de possibilitar também um mapeamento de produtividade, eficiência e de riscos envolvidos na produção. E, claro, basear e tornar mais efetiva a tomada de decisão por parte dos gestores.
No entanto, como em qualquer processo de transformação, é necessário que o mercado se adeque àquilo que está por vir, entendendo as oportunidades, mas principalmente os desafios inerentes às novidades e inovações que se apresentam, de forma que faça sentido para o momento atual do negócio e para a estratégia em curso.
Em um segmento ainda pouco tecnológico e digitalizado, o conceito de indústria 4.0 ainda parece um pouco distante no Brasil, apesar de, aos poucos, começar a ser temas de discussão internamente nas empresas e publicamente pelo mercado como um todo. Os desafios, no entanto, inegavelmente existem e demandam dos atores certa adaptação, de forma que incorra em uma real transformação digital.
Baixo índice de digitalização do segmento
O Indústria 2027 é uma iniciativa da CNI (Confederação Nacional da Indústria) em parceria com a IEL (Instituto Euvaldo Lodi) e em conjunto com pesquisadores da UFRJ e UNICAMP, que nasceu com o objetivo de avaliar como oito grupos de tecnologia vão impactar dez setores produtivos da economia brasileira nos próximos cinco e dez anos.
O projeto foi dividido em três etapas, nas quais foram realizadas, em um primeiro momento “análises das tendências e potenciais impactos das tecnologias sobre sistemas produtivos”, seguidas de uma “avaliação dos efeitos das tecnologias nos sistemas produtivos, nos focos setoriais e na competitividade empresarial”, e, por fim, realizou-se uma “reflexão sobre estratégias públicas e privadas”.
De acordo com os resultados de um dos estudos feitos, somente 1,6% das aproximadamente 750 companhias respondentes se encontravam, em 2017, na quarta geração de digitalização (G4), o estágio mais avançado, com sistemas integrados, fábricas conectadas e inteligentes. A grande maioria delas (75%) declararam estar em níveis básicos, nas primeira (G1) e segunda (G2) gerações de digitalização. Apesar disso, 60% espera alcançar, até 2027, o G3 ou G4.
Iniciativas e conectividade para PMEs
Iniciativas governamentais para alavancar a indústria 4.0 têm surgido em períodos recentes. Criada em 2019, a Câmara Brasileira da Indústria 4.0, que é comandada pelo ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e da Economia (ME), desenvolveu um planejamento colocado em vigor até 2022, que conta com a parceria de mais de 30 instituições governamentais, iniciativa privada e academia.
Segundo publicação no portal gov, o plano busca “alavancar o uso de conceitos e práticas relacionados à indústria 4.0 no Brasil e, com isso, aumentar a competitividade e a produtividade das empresas nacionais”. Além disso, também tem como objetivo “melhorar a inserção do país nas cadeias globais de valor e introduzir o uso de tecnologias da manufatura avançada nas pequenas e médias empresas.”
No Brasil, os pequenos negócios representam 98,5% das empresas no Brasil, totalizando 12,4 milhões de MEIs, micro e pequenas empresas; conforme dados do SEBRAE, até 2022 eles serão cerca de 17,7 milhões, número 43% superior ao atual. Apesar de tamanha representatividade, ainda é comum associar tal segmento à falta de tecnologia, o que não é, necessariamente, verdade. Pelo contrário, algumas iniciativas têm facilitado o acesso do setor às inovações, apesar de os desafios ainda existirem.
De acordo com Sérgio Soares, Diretor do Instituto SENAI de Inovação para TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), a instituição tem desenvolvido projetos de IoT para pequenas empresas, que podem usufruir e colher os benefícios consequentes, mas ainda veem a inovação tecnológica como algo distante.
“No Instituto SENAI, nós desenvolvemos um produto internamente, uma plataforma para monitoramento de linha de produção, uma solução básica de IoT. É um produto de entrada para as pequenas indústrias, que têm menos recursos e condições técnicas para implementar alguma tecnologia do tipo. Quando se fala sobre indústria 4.0 para esse segmento, as empresas menores se assustam e, por conta disso, a gente acompanha a implementação com consultorias”, conta Soares.
Ainda de acordo com ele, intervenções simples podem representar um ganho interessante de produtividade, e os resultados são claros para as companhias de menor porte. Tais ganhos, no entanto, ainda são um primeiro passo em direção a um próximo nível e não representam, de fato, o desejado estágio 4.0.
“Entendemos isso que estamos fazendo como o primeiro passo para habilitação e preparação para as evoluções que estão chegando. A discussão ainda é sobre conectividade. A oportunidade está em soluções simples, de baixo custo, que trazem resultados, informações relevantes. Nesse momento, as empresas precisam de pouquíssima coisa, qualquer ganho é relevante. Tecnologias simples, habilitadas por IoT são necessárias e suficientes”, completa.
Desafios para a implementação
Ao mesmo tempo, desafios de infraestrutura, mindset e cultura existem de forma geral no setor industrial, e não apenas no segmento de PMEs. E, apesar de o conceito de IoT industrial (também conhecido como IIoT) parecer óbvio – basicamente, sendo a digitalização do ambiente e coisas físicas dentro de processos da indústria –, os desafios que carrega consigo são complexos.
De acordo com João Emílio Gonçalves, gerente-executivo de Política Industrial da CNI, em entrevista à PEGN, os principais desafios para o avanço em direção à indústria 4.0 estão relacionados à adaptação das empresas para isso: modernização produtiva, adoção de novas tecnologias, qualificação de recursos humanos e infraestrutura de telecomunicações.
Ou seja, não se pode tratar tal conceito e tecnologias relacionadas simplesmente como algo plug-and-play. Não se trata da simples instalação de sensores que captem informações e joguem isso para uma central de forma desordenada, sem que esses dados venham a ter um tratamento conveniente posteriormente. Tudo isso demanda uma preparação, um alinhamento de expectativas e, como dito anteriormente, uma conciliação com a estratégia de negócios da companhia.
Práticas para o sucesso na implementação
Apesar dos já conhecidos benefícios consequentes do IIoT e do senso de urgência existente para que as empresas inovem o quanto antes, realizar essa adoção de forma desordenada pode trazer resultados indesejados. Conforme resultados de uma pesquisa realizada pela Cisco, em 2017, apenas 26% das empresas entrevistadas obtiveram sucesso em suas iniciativas com Internet das Coisas. Tais empresas elencaram três práticas-chave para um resultado positivo: colaboração entre as áreas de TI e Negócios, expertise e know-how na prática (parcerias internas e externas) e uma cultura organizacional focada em tecnologia.
Em convergência a isso, segundo Anne Priscila Trein Litaiff, autora do índice de maturidade em indústria 4.0 do SENAI, coordenadora do MBI (Master in Business Innovation) em indústria avançada e especialista em inovação da FIESC, tecnologias relacionadas à Internet das Coisas Industrial já existem e estão prontas para serem utilizadas, mas a adoção delas não é viável se a empresa não estiver preparada para isso, com processos padronizados e otimizados.
“As tecnologias foram desenvolvidas, existem muitas empresas na área de sensores, por exemplo. Em contrapartida, se as indústrias não souberem realmente focar seus esforços e se estruturar, não vão conseguir aplicar tecnologia de modo inteligente. Primeiro, é preciso construir uma base cultural, de conhecimento e de definição estratégica, um plano de fundo que possibilite a transformação digital – além disso, muitas vezes os diferentes sistemas da empresa não se conversam, o que gera outro desafio no processo de integração e criação de uma única fonte de dados sobre o que ocorre nos processos da empresa”, afirma Litaiff.
Ainda de acordo com a pesquisa da Cisco, existem cinco principais obstáculos que retardam o progresso do IoT: prazo de execução, qualidade dos dados, expertise interna, integração de sistemas e custos excessivos. Além disso, 60% dos respondentes acreditam que iniciativas relacionadas à Internet das Coisas são diferentes na teoria e na prática, sendo, na realidade, muito mais complexas do que parecem, e justamente por isso demandam a preparação em termos de estratégia, infraestrutura e conhecimento sobre dados. Ao mesmo tempo, 64% concordam que o aprendizado em relação a iniciativas malogradas ajudaram a acelerar os investimentos em IoT.
Preparação: integração e conceito
A Colgate-Palmolive, por exemplo, é uma empresa que ainda não adotou o conceito de Internet das Coisas em seus processos industriais, mas se prepara para a implementação em um futuro próximo. Segundo Abraham Cazes, Diretor de P&D do Centro Global de Tecnologia Brasil da companhia, apesar de a organização enxergar benefícios nessa digitalização, existe um processo de preparação para que a adoção seja feita de forma coerente e estratégica.
“Acho que existe uma parte do mercado que olha para IoT por simples modismo, outras por curiosidade. Nós estamos aprendendo, observando, procurando exemplos do que tem sido feito para entender como podemos aplicar. Há uma grande oportunidade de tornar as respostas e decisões mais ágeis, e ter uma comunicação mais direta, em tempo real. É a possibilidade, também, de basear mais essas decisões, deixar o campo da subjetividade. Em um momento posterior, a ideia é alcançar a predição de resultados e simplificação de trabalhos que são realizados manualmente”, conta Cazes.
Conforme Cazes, os principais obstáculos estão ligados ao entendimento sobre o conceito – de forma que seja possível visualizar os outputs e quais retornos isso pode trazer – e ao mindset, já que os processos sempre foram feitos da mesma maneira por décadas e funcionaram, mas podem ser ainda melhores a partir de novas tecnologias e inovação.
Uma análise publicada pelo portal Computerworld vai exatamente ao encontro do que foi dito por Cazes. Segundo a publicação, que tem como autora a Líder de IoT para América Latina da Softline Brasil, Vivian Heinrichs, existe um obstáculo relacionado à integração de máquinas mais antigas a novas tecnologias e sistemas para rastreamento de dados. Sendo assim, antes de entender quando, de fato, a indústria brasileira irá entrar em um nível 4.0, é preciso entender como isso será feito.
Outro desafio está relacionado à força de trabalho: hoje, quem resolve os problemas existentes nos processos industriais são os funcionários do chão de fábrica, detentores do conhecimento técnico, que não está estruturado, mas está ligado a práticas há muito tempo utilizadas no mercado. De acordo com Heinrichs, “conectividade significa deter a informação estratégica também e antecipar-se às necessidades de infraestrutura, reduzindo recursos no que tange à manutenção e tempo de parada, além de ter um processo estruturado de gestão do parque fabril”.
A importância das startups no contexto
Dentro desse contexto de adaptação, startups focadas em IoT industrial surgem como boas opções para o mercado, visto que têm potencial – e podem representar um passo importante – para agilizar implementações e os processos existentes a partir de suas soluções. De acordo com Guilherme Dal Lago, Head de Open Innovation da Raízen e gestor do Pulse, a empresa se utiliza de serviços oferecidos por startups, e as soluções desenvolvidas por essas empresas apresentam custos mais baixos, podendo trazer impactos relevantes para as companhias clientes.
“Existe um desafio de proporcionar um ambiente que seja acolhedor, além de estimular parcerias em formatos ganha-ganha em um modelo de inovação aberta. As startups nos auxiliam no processo de nos tornarmos uma organização que vem transformando sua cultura para ter uma abordagem mais digital, com processos mais ágeis e uma forma de trabalho mais colaborativa, em que parceiros externos cada vez mais irão desempenhar um papel de protagonismo ao lado de nossos colaboradores na cocriação de soluções”, afirma.
A MOB é uma startup de São Paulo, fundada em 2013, que oferece uma solução de IoT industrial baseada em hardware + SaaS (HaaS – Hardware as a Service), por meio da qual possibilita a captura de dados no chão de fábrica e uma posterior análise sobre eles. Segundo Mauricio Finotti, CEO e fundador da MOB, o modelo de negócio da startup permite a adaptação da solução conforme as necessidades e orçamento do cliente. Apesar do foco em PMEs, também atende grandes corporações.
“Nossa solução, focada em IoT, tem como grande objetivo a melhoria de produtividade na indústria. Isso envolve, primeiramente a melhoria no processo de coleta de dados ou até mesmo iniciar essa captura, que às vezes é inexistente. Com sistemas de coleta de dados implementados, atuamos em duas frentes distintas: o monitoramento de atividades logísticas dentro da empresa, no qual é possível analisar o perfil de utilização dos ativos e comportamento de equipamentos, em que estabelecemos critérios para manutenção preditiva, de forma a identificar uma possível falha que uma máquina possa ter em um futuro próximo. O setor industrial ainda se utiliza muito pouco de dados, já que, em meio a processos manuais, eles acabam sendo perdidos ou mal gerenciados”, afirma Finotti.
Ainda de acordo com ele, a utilização de analytics simples permite a identificação de padrões relacionados à ociosidade e super utilização de equipamentos. O hardware desenvolvido conta com sensores capazes de captar, por exemplo, informações de temperatura, umidade, vibração, campo magnético e outros, que são enviados para a nuvem e entregues em um dashboard. Hoje a MOB conta com mais de 50 clientes ativos, sendo 25% deles grandes empresas e 75% deles compostos por pequenas e médias corporações.
Conforme um estudo realizado pela PwC – e como foi discutido neste post –, aos poucos as empresas do setor industrial têm buscado tornar seus processos mais conectados e integrados, um passo vital, mas que representa o início da jornada de digitalização, não o fim. É necessário que os próximos passos sejam focados em tornar essa disrupção em oportunidades para criação de valor e de vantagens competitivas, de maneira que as companhias usufruam de todos os benefícios (ou de grande parte deles) propiciados pelo IIoT.
Fundada em 2011, em Recife (PE), a Senfio é uma startup com soluções de IoT, focadas principalmente em monitoramento de temperatura e umidade para câmaras frias, data centers, estoques, freezers e geladeiras. Atua em ambientes como hospitais, farmácias, centros de distribuição, indústria e outros.
A Ubivis é uma startup paranaense, fundada em 2014, que oferece soluções de IoT industrial, para otimização de processos por meio de analytics e sistemas inteligentes. Desenvolveram, como principais produtos, um controle remoto operacional, robôs para automação de máquinas e realidade aumentada para manutenção preditiva.
A Konux é uma startup alemã, com sede em Munique, que integra sensores inteligentes a analytics baseados em inteligência artificial para entregar insights de ativos de fábrica de ponta a ponta, em tempo real e otimizar planejamentos de manutenção. Fundada em 2014, já captou US$51.6 milhões em investimentos.
Fundada em Pisa, na Itália, a Alleantia é uma startup de software voltada para Internet das Coisas Industrial. A solução possibilita a conexão de qualquer máquina, ativo ou dispositivo de automação à internet, sistemas da companhia e outras aplicações. Atende, principalmente, integradores de sistema e fabricantes de máquinas.