Em uma primeira leitura, quando paramos para analisar as forças que impulsionam o mercado global de energia, é possível perceber movimentos que, a princípio, parecem caminhar em direções opostas.
Segundo o World Energy Markets Observatory – pesquisa referência para o setor energético da Capgemini –, por exemplo, ao passo que os investimentos em energias renováveis cresceram 14,5% em 2019 e são as fontes de energia que mais se expandem do ponto de vista econômico, nas principais economias do mundo (China e Estados Unidos), por sua vez, o direcionamento de recursos para as chamadas energias limpas caiu, respectivamente, 39% e 4%.
Além disso, mesmo com o crescimento da utilização e dos investimentos em energias renováveis, o fato é que os combustíveis fósseis seguem como as principais fontes energéticas do planeta e o desenvolvimento econômico de muitos países continua dependente de fontes não-renováveis como o carvão, as quais, segundo o estudo da Capgemini, são desafios importantes para a transição energética global.
Analisando o contexto
Para entender esses movimentos, temos de levar em conta desde questões políticas até aspectos econômicos.
Leonardo Paz Neves, professor do IBMEC, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas e um dos autores de estudo da FGV que identificou as principais tecnologias emergentes aplicáveis no contexto das energias renováveis, destaca, por exemplo, o custo – que segue mais acessível – das energias fósseis para os consumidores, como um fator importante para o entendimento do cenário atual do segmento energético.
“Traçando uma linha comparativa, há uma distância significativa em favor do uso de petróleo, carvão e de outros combustíveis fósseis, que ainda têm um custo de implantação mais baixo. Este cenário tem potencial para se transformar quando as energias renováveis se tornarem mais eficientes e baratearem, movimento que, aos poucos, vem ocorrendo. Já a tendência, a longo prazo, é que as demais energias, advindas de combustíveis fósseis, se tornem mais caras, além do fato de que, em algum momento, elas podem ser taxadas pelo poder público, perdendo seu apelo na sociedade”, comenta Neves.
Sobre o barateamento das energias renováveis, vale destacar – segundo o relatório já citado da Capgemini lançado em 2019 – que os custos das principais fontes de energia limpa vem caindo gradativamente, incluindo quedas expressivas nos custos de bioenergia (-14%), solar (-13%), eólica (-13%) e hidrelétrica (-11%).
Para o professor, pesquisador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e especialista em sustentabilidade, Wilson Cabral de Sousa Júnior, as energias renováveis (também chamadas de energia verde) assumem um papel decisivo para a expansão da sustentabilidade no planeta.
“A energia “verde”, que engloba as fontes renováveis e com menor impacto ambiental é o insumo energético que dá suporte à sustentabilidade do planeta. A inserção destas fontes em um ritmo cada vez maior é uma resposta do meio corporativo à demandas de sustentabilidade, a qual pode impactar, direta ou indiretamente os próprios negócios. No Brasil, este crescimento tem sido lento, porém gradual”, explica Sousa Júnior. Também fundador da TecSUS – empresa de monitoramento e telemetria e que investe na gestão de ativos monitorados como energia, água e gás – o pesquisador acredita que a tecnologia tem um papel propositivo na busca pela difusão da sustentabilidade.
O mercado livre de energia
Dentro deste debate sobre energia limpa e busca pela diminuição do uso de combustíveis fósseis, é possível afirmar que o mercado livre de energia tem sido um importante vetor para a expansão do uso de energias renováveis no Brasil e no mundo.
Segundo dados da consultoria ePowerBay divulgados no Portal Solar, por exemplo, do total de 10,8 gigawatts em capacidade de outorgas emitidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2019, 82,8% foram para projetos de energia limpa que serão negociados no Ambiente de Contratação Livre.
Ainda segundo a consultoria, os projetos de usinas solares cresceram de 1,33 gigawatt em 2018, para 5,8 gigawatts no ano passado, sendo que somente 3,6% destas outorgas foram direcionadas para o mercado regulado; enquanto as outorgas dos parques eólicos se expandiram de 2,35 gigawatts para 4,1 – 70% delas sendo negociadas no mercado livre de energia.
A nível global, a compra de energia limpa no ambiente empresarial cresceu 44% em 2019, por meio dos chamados PPAs (Power Purchase Agreements – Contratos de Compra Energia), de acordo com levantamento da BloombergNEF. Embora aponte que a maior parte destes contratos ocorreu nos Estados Unidos, a consultoria destaca que houve crescimento em todo mundo deste movimento, sobretudo em virtude de uma busca pela sustentabilidade corporativa.
Conceitualmente, o mercado livre de energia envolve um espaço de mercado nos quais agentes podem negociar a comercialização e a compra de energia, desde que observada a regulamentação do setor.
Conforme informações presentes no Portal Ambiente Energia, apenas 30% de toda a energia consumida no Brasil está inserida no ambiente de contratação livre.
A visão de especialistas
Para Sami Grynwald, gerente de novos negócios da Thymos, este cenário deve se expandir com a entrada de novos consumidores no ambiente de contratação livre.
“Nós devemos seguir com esta tendência, de consumidores menores migrando para o mercado livre. Hoje, o mercado livre abarca em torno de 30% do mercado. Só com a regulação atual, já deve se expandir para até 45% do mercado. O crescimento de oferta de energia sempre foi propiciado pelo mercado regulado de energia, no entanto, com a redução da economia e do consumo, já houve um direcionamento de novos geradores para o mercado livre, e agora estamos vendo uma onda de que grandes consumidores investem em geração própria, muito por conta da volatilidade de preço do mercado de energia no Brasil; então os grandes consumidores estão amadurecendo, no sentido de buscar contratos mais longos, justamente para evitar a volatilidade e um dos formatos que estão buscando é a geração própria”, explica Grynwald.
Ângela Menin, professora e coordenadora do curso de Engenharia de Energia da PUC-MG, destaca, por sua vez, alguns dos benefícios que o ambiente de contratação livre pode trazer para os consumidores, levando também em conta o Projeto de Lei (PLS 232/2016), que tem grande expectativa de ser aprovado este ano e deve abrir espaço para a expansão do mercado livre de energia, inclusive para usuários residenciais.
“A possibilidade da negociação direta de contratos de fornecimento de energia elétrica com os geradores ou comercializadores tende a gerar uma redução de custos significativas para os consumidores. Nos contratos bilaterais, são negociados livremente – entre fornecedores e consumidores – o preço, o prazo, a quantidade. Assim, o mercado livre apresenta-se como um meio de obtenção de energia elétrica confiável, por preço negociado. Registra-se ainda que tramita no Congresso Nacional, já com aprovação na Comissão de Infraestrutura do Senado Federal, o Projeto de Lei (PLS 232/2016) que abre caminho à portabilidade da conta de luz entre as distribuidoras. Esta possibilidade será um facilitador para a consolidação do mercado, pois os consumidores de cargas superiores a 3 mil quilowatts (kW) de energia poderão escolher livremente seu fornecedor”, sintetiza Menin.
Para que haja uma maior adesão a este mercado, no entanto, existe o desafio educacional, no sentido de conscientizar a população, em geral, sobre os benefícios e possibilidades do mercado livre de energia.
“Pensando no mercado livre, ele já é conhecido pela maior parte das indústrias, varejo e comércio. Mas sim, ainda acho que o consumidor poderia ser mais ativo e, neste sentido, há uma necessidade de educar o mercado sobre novas possibilidades de consumo de energia. Mas, com a economia crescendo abaixo do ritmo esperado, a tendência é que que os consumidores passem a olhar com maior atenção para seus custos – e energia é sempre um fator importante de custo, logo, as pessoas precisam pensar em formas de gerar mais economia e sustentabilidade energética”, aponta o gerente de novos negócios da Thymos, Sami Grynwald.
Consumidores e Digitalização
Toda esta análise deve levar em conta, por fim, dois aspectos cruciais que são cruciais para obtermos uma percepção mais acurada do mercado de energia brasileiro. São eles:
- O posicionamento do consumidor frente às mudanças que estão ocorrendo no segmento energético;
- A digitalização e o surgimento de novas tecnologias no setor de energia.
Sobre o posicionamento do consumidor dentro do cenário atual do mercado de energia e da expansão do uso de fontes renováveis, o professor e pesquisador do ITA, Wilson Cabral de Sousa Júnior, destaca a tendência de fortalecimento de consumidores que também são produtores de energia (também conhecidos como prosumers, na acepção internacional do conceito). Este movimento, por sua vez, deve fomentar o surgimento de novas tecnologias no setor energético.
“O Brasil possui um grid elétrico abrangente, o Sistema Interligado Nacional (SIN). Neste sistema, é possível a inserção de energia em qualquer de suas pontas, com consumo subsequente em outra e perdas relativamente pequenas. Isso permite a inserção muito mais contundente de geração distribuída, transformando o que hoje são apenas consumidores finais em microprodutores de energia. No contexto das energias renováveis, isso se adequa à fonte solar fotovoltaica, mas também à energia eólica (os geradores tipo Small Wind). Tais modalidades demandarão interfaces, rastreamento e conectividade, as quais podem ser supridas por inovações tecnológicas em consolidação ou até mesmo por tecnologias disruptivas”, explica Sousa Júnior.
Ângela Menin aponta, por conseguinte, alguns dos benefícios que as novas tecnologias podem trazer para o segmento energético.
“A digitalização de sistemas e processos está cada vez mais presente nas atividades humanas. Sendo assim, não poderia deixar de influenciar o setor elétrico. Novas tecnologias conseguem incorporar diversos melhoramentos, tais como aumento da capilaridade do sistema elétrico; uso, no horário de ponta, de energia armazenada nos horários fora de ponta; disponibilização de bancos de dados para usos em melhorias dos sistemas e processos de gestão, com reflexos importantes na qualidade do monitoramento e uso dos equipamentos; aumento da eficiência energética”, diz a professora e coordenadora do curso de Engenharia de Energia da PUC-MG.
Dentro de todo este contexto, Leonardo Paz Neves, Professor do IBMEC e Pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, frisa a importância das startups para que se possam trilhar caminhos que, de fato, tragam a disrupção e maior sustentabilidade para a realidade do mercado de energia brasileiro e global.
“Temos um conjunto de tecnologias que nos permitem fazer coisas, hoje, que não podiam ser feitas no passado. Hoje, temos soluções que te ajudam a determinar se a energia que você consome veio de Itaipu ou de uma fazenda eólica no sul da Bahia. Com o blockchain, apenas para citar um exemplo, você consegue validar a energia renovável e ter clareza de que a energia que você vai consumir, através do mercado livre, virá sempre de eólica, solar, etc., aumentando assim o poder de decisão do consumidor. E boa parte das soluções mais disruptivas estão vindo das startups. Um grande desafio é levar estas novas tecnologias para além dos grandes centros, para cidades que também possuem demanda por energia renovável, por rotas de entrada para o mercado livre e por maior eficiência”, conclui Neves.